Gratuidade: o transporte público e a "relevância financeira" do jornalismo
Priscila Viana*
O prazo de inscrições para o Prêmio Setransp de Jornalismo está quase
se encerrando e uma febre de reportagens sobre a gratuidade no
transporte público toma conta das páginas de todos os veículos. Em todas
elas, destaca-se a defesa pelo fim da gratuidade e a culpabilização dos
idosos, deficientes, carteiros, policiais militares, agentes
penitenciários, bombeiros militares e guardas municipais pela tarifa
extremamente elevada. De forma bastante leviana, essas reportagens
colocam passageiro contra passageiro e isentam as empresas de transporte
público de suas responsabilidades.
Não criticam as condições
estruturais dos veículos, tampouco a carga horária extensiva enfrentada
pelos motoristas de ônibus e cobradores. Não falam sobre os pontos de
ônibus velhos, desprovidos de teto e com suas estruturas metálicas
enferrujadas e caindo aos pedaços, causando desconforto aos passageiros
que esperam pelos ônibus e colocando em risco a vida dos transeuntes
(algumas estruturas, de tão velhas, até já caíram no chão). Não exibem
depoimentos de passageiros que sofrem com a falta de segurança nos
terminais de ônibus nem dos trabalhadores que prestam serviços a essas
empresas, tampouco pedem transparência nas planilhas de gastos e
investimentos no transporte público.
Ao mesmo tempo que nos
perguntamos o porquê de tantas reportagens diárias a respeito da
gratuidade do transporte público, questionamos também o porquê de não
serem publicadas reportagens denunciando as condições precárias e
subumanas com que passageiros e trabalhadores são tratados pelas
empresas. Entrevistar passageiros com a máxima: "Você sabia que é você
que paga pela gratuidade do transporte público?" é cômodo. Mas
dirigir-se à Piabeta, à Cidade Nova, ao santa Maria e ao Coqueiral para
perguntar à população da periferia se ela está satisfeita com o
transporte público seria uma boa matéria de se ver. Mas não vemos. Será
que é porque as equipes de reportagem substituem a relevância
jornalística do assunto pelo dinheiro e pelo status do prêmio? Isso é
óbvio. Não pegam ônibus, não sabem o transtorno e os sacrifícios da
rotina de quem depende de ônibus.
Além do interesse
jornalístico na "relevância financeira" da reportagem, está em jogo o
fato de que os donos dos jornais também são proprietários das empresas
de ônibus. Elementos típicos de uma terra de ranço provinciano,
subserviente às famílias tradicionalmente detentoras do poder econômico.
E assim continuam os três lados da história: os donos das empresas se
deliciam com essas reportagens e enriquecem às custas do trabalhador, os
jornalistas recebem seus prêmios, colocam na estante de sua casa e
continuam reclamando dos congestionamentos que enfrentam dentro de seus
carros, e os passageiros de ônibus continuam pagando caro para enfrentar
condições subumanas. Uns dependentes de suas necessidades
socioeconômicas. Outros, de seus interesses individuais.
*Jornalista desinteressada no Prêmio Setransp de Jornalismo.
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